A “gordura no fígado” mudou de nome e será abordada na Diretriz SBD 2024

A “gordura no fígado” mudou de nome e será abordada na Diretriz SBD 2024

Dr. Wellington Santana da Silva Júnior
Membro do Departamento de Diretrizes da SBD

A “doença hepática esteatótica metabólica” (DHEM, uma versão simplificada em português para “metabolic dysfunction-associated steatotic liver disease” [MASLD]) será abordada em um capítulo específico da nova Diretriz da SBD, com lançamento previsto para março de 2024. O capítulo trará a atualização da abordagem diagnóstica e terapêutica da DHEM nas pessoas com pré-diabetes ou diabetes, e irá adotar a atualização global da nomenclatura e classificação desta que é a doença mais comum do fígado, afetando 30% da população mundial.1

A necessidade de atualização da nomenclatura e classificação da DHEM apresenta uma história interessante. Na década de 80, os termos “doença gordurosa não alcoólica do fígado” (non-alcoholic fatty liver disease [NAFLD]) e “esteato-hepatite não alcoólica” (non-alcoholic steatohepatitis [NASH]) foram criados para descrever a histologia hepática de uma série de pacientes com doença do fígado não associada ao consumo de álcool. A partir de então, esses acrônimos foram extrapolados para descrever o espectro da própria doença, o que acabou despertando algumas críticas.2 Primeiro, porque informavam mais sobre o que essa condição clínica não era (alcoólica) do que sobre a sua verdadeira natureza (metabólica). Segundo, porque muitos pacientes com esteatose predominantemente metabólica também ingeriam álcool, muitas vezes de forma errática.

Em um avanço no sentido de reconhecer a verdadeira origem da esteatose hepática, em 2021, a SBD utilizou o termo “doença hepática gordurosa metabólica” (DHGM) para descrever essa entidade em sua diretriz3, reconhecendo que, mais do que “associada a disfunções metabólicas”, a doença esteatótica do fígado é per se metabólica. Embora essa mudança na nomenclatura tenha sido bem aceita pela comunidade médica no Brasil, o termo “gorduroso” ainda era percebido de forma pejorativa internacionalmente, em decorrência de possíveis implicações estigmatizantes na percepção dos pacientes e da sociedade em geral sobre essa condição. Assim, em 2023, um novo consenso proposto por diversas sociedades internacionais foi publicado4, estabelecendo uma nova classificação e nomenclatura para a doença hepática esteatótica, conforme o esquema apresentado na Figura 1.

Figura 2. Subclassificação da doença hepática esteatótica (DHE).

A figura descreve a subclassificação da DHE. Dentro do grupo DHEM-DHA, há um continuum através do qual as contribuições da DHEM e da DHA variam. Para se alinhar com a literatura atual, foram definidos limites para o consumo semanal e diário, uma vez que o impacto dos diferentes níveis de ingestão de álcool varia entre indivíduos. *Ingestão semanal de 140–350 g para mulheres e de 210–420 g para homens (ingestão média diária de 20–50 g para mulheres e de 30–60 g para homens). **por exemplo, deficiência de lipase ácida lisossomal, doença de Wilson, hipobetalipoproteinemia, erros inatos do metabolismo. ***por exemplo, vírus da hepatite C (HCV), desnutrição, doença celíaca, vírus da imunodeficiência humana (HIV).

Adaptado de Rinella ME, Lazarus JV, Ratziu V et al.4

Em resumo, o termo “doença hepática esteatótica” (DHE) passou a caracterizar as mais variadas etiologias da gordura no fígado, e o termo “esteato-hepatite” foi mantido. A presença da DHE associada a pelo menos um de cinco fatores de risco cardiometabólicos passou a ser denominada “DHEM”, e o subgrupo desses pacientes que consomem quantidades significativas de álcool foi denominado “DHEM-DHA”. Essa subcategoria permite estabelecer uma distinção entre os indivíduos com a DHEM pura e a “DHA” (doença hepática alcoólica) pura. O acrônimo “EHM” caracteriza a DHEM acompanhada de esteato-hepatite, e a “DHE criptogênica” define a DHE em pessoas sem fatores de risco cardiometabólicos e sem uma etiologia conhecida para a doença hepática.4

A nova nomenclatura oferece uma oportunidade para reunir os especialistas e a comunidade científica, desencadeando novas pesquisas para compreender melhor a epidemiologia, a história natural, o diagnóstico, os biomarcadores e as estratégias de manejo em todo o espectro da DHE.5 Destaca-se que a mudança de NAFLD para DHEM leva a taxas de incidência da respectiva doença hepática esteatótica bastante semelhantes, como demonstrado no estudo epidemiológico ELSA-Brasil.6

Unindo-se à comunidade internacional nos esforços de estabelecer critérios diagnósticos e nomenclatura cientificamente mais adequados e menos estigmatizantes, e difundi-los globalmente, a SBD também passa a adotar as novas denominações para o espectro da doença esteatótica do fígado nas suas versões em inglês7 e em português.

Referências:

1. Younossi ZM, Golabi P, Paik JM, et al. The global epidemiology of nonalcoholic fatty liver disease (NAFLD) and nonalcoholic steatohepatitis (NASH): a systematic review. Hepatology. 2023 Apr 1;77(4):1335-1347. doi: 10.1097/HEP.0000000000000004.

2. Fouad Y, Waked I, Bollipo S, et al. What’s in a name? Renaming ‘NAFLD’ to ‘MAFLD’. Liver Int. 2020 Jun;40(6):1254-1261. doi: 10.1111/liv.14478.

3. Godoy-Matos A, Valério CM, Silva Júnior WS, et al. [Doença hepática gordurosa metabólica (DHGM)]. Diretriz Oficial da Sociedade Brasileira de Diabetes. 2023. doi: 10.29327/557753.2022-21.

4. Rinella ME, Lazarus JV, Ratziu V, et al. A multisociety Delphi consensus statement on new fatty liver disease nomenclature. Hepatology. 2023 Jun 24. doi: 10.1097/HEP.0000000000000520.

5. Loomba R, Wong VW. Implications of the new nomenclature of steatotic liver disease and definition of metabolic dysfunction-associated steatotic liver disease. Aliment Pharmacol Ther. 2024 Jan;59(2):150-156. doi: 10.1111/apt.17846.

6. Perazzo H, Pacheco AG, Griep RH, et al. Changing from NAFLD through MAFLD to MASLD: Similar prevalence and risk factors in a large Brazilian cohort. J Hepatol. 2023 Sep 9:S0168-8278(23)05079-1. doi: 10.1016/j.jhep.2023.08.025.

7. Godoy-Matos AF, Valério CM, Silva Júnior WS, et al. 2024 UPDATE: The Brazilian Diabetes Society position on the management of metabolic dysfunction-associated steatotic liver disease (MASLD) in people with prediabetes or type 2 diabetes. Diabetol Metab Syndr. 2024. Ahead of print. doi: 10.1186/s13098-024-01259-2.

Dr. Wellington Santana da Silva Júnior
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