Reversão do diabetes tipo 2 – é possível?

Este é um resumo de duas apresentações do último congresso on-line da Associação Americana de Diabetes (ADA), realizada em junho de 2020, dentro de um Simpósio que discutiu a possibilidade de reversão do diabetes tipo 2.

O primeiro apresentador, o Prof. Domenico Accili, da Columbia University, fez a seguinte indagação: Podemos reverter a falência das células beta-pancreáticas?

Apesar dos inúmeros avanços terapêuticos, o diabetes tipo 2 continua sendo uma doença progressiva. Novas drogas até prolongam a duração das células beta, porém a falha secundária ainda persiste. Alguns autores até propõe que o problema está em não corrigirmos adequadamente o distúrbio primordial, que é a resistência insulínica.

No entanto, um estudo publicado em 99, no JCI, por Weyer e colaboradores, avaliou índios Pima e observou que apesar da presença de resistência insulínica, alguns indivíduos eram capazes de compensar este defeito, com aumento da função das células beta, e estes não evoluíam para diabetes, ao passo que outros desenvolviam falência das células beta e diabetes.

A reserva das células beta depende do produto da função secretória destas células e de sua massa total de células, que por sua vez, além do papel do meio ambiente e do estilo de vida, são influenciados por fatores genéticos.

As células beta podem ter quatro destinos na progressão ao diabetes. Podem se tornar menos competentes no reconhecimento dos níveis circulantes elevados de glicose, criando uma sub-população de células metabolicamente inflexíveis. Podem sofrer um quadro de senescência precoce, apoptose e morte. Podem se tornar células indiferenciadas, sem qualquer capacidade de secreção hormonal. Ou ainda, podem apresentar um processo de desdiferenciação celular, tornando-se células híbridas, com características intermediárias entre a célula beta e a célula alfa. Esta célula tem capacidade reduzida de secreção de insulina e apresenta um tônus elevado de secreção de glucagon, que não é inibido pela hiperglicemia.

Este processo de desdiferenciação, verificado tanto em modelos animais como nos humanos, envolve a ativação de um promotor nuclear denominado FOXO1, que por sua vez é estimulado pelo influxo exagerado de ácidos graxos livres nas células beta, acarretando sobrecarga do retículo endoplasmático, geração de radicais superóxidos e disfunção mitocondrial.

Pesquisadores fizeram a análise de mapas de expressão de genes regulatórios do processo de diferenciação das células beta, através da quantificação do RNA mensageiro e da avaliação de marcadores de funcionalidade, utilizando a atividade de proteínas marcadas. A partir daí realizaram experimentos in vitro, utilizando estes potenciais marcadores de expressão, com dois objetivos: o primeiro, avaliando células beta normais e tentando induzir desdiferenciação, e o segundo, avaliando células beta já desdiferenciadas e tentando revertê-las para células beta normais.

Um dos marcadores, denominado BACH2, demonstrou ser um potente indutor de diabetes, com conversão fenotípica de células beta na direção de células alfa, enquanto um outro marcador, denominado AFF3, teria o efeito contrário. A elucidação do papel do AFF3 traz entusiasmo com a possibilidade de, no futuro, sermos capazes de ampliar a população de células beta a partir das células alfa pancreáticas, ou de células do epitélio intestinal, produtoras de glucagon. Por outro lado, já existe no mercado um medicamento, denominado dimetil-fumarato, capaz de inibir BACH 1 e 2, aprovado pelo FDA, para o tratamento da esclerose múltipla. Esta poderia ser também uma via promissora, vindo a acrescentar mais um representante no arsenal terapêutico do diabetes tipo 2.

Na segunda apresentação deste mesmo simpósio, a Profa. Barbara Kahn, da Harvard University, lançou a seguinte provocação: Os lipídeos podem melhorar a resistência à insulina e também a função das células beta?

Muitos enxergam o diabetes tipo 2 como associado a uma disfunção do metabolismo de carboidratos. Entretanto, são diversos os estudos que apontam que a resistência à insulina e a hiperglicemia podem ser secundários à anormalidades do metabolismo lipídico. O efeito deletério da chamada lipotoxicidade tem sido muito estudado pelos pesquisadores em Harvard, e está diretamente ligada à concentração de ácidos graxos livres circulantes e ao denominado depósito ectópico intracelular de gotículas lipídicas.

Dentro da classe dos lipídeos existe uma hierarquia e uma diferença funcional importante. A macro-constituição de triglicerídeos na forma saturada, monoinsaturada e poliinsaturada já constitui importante exemplo disto, com diferentes resultados clínicos no ser humano. Temos também a classificação conforme o peso molecular, onde lipídeos de baixo peso molecular, voláteis, advindos da degradação de celulose, por bactérias da flora do cólon, tem importante efeito trófico sobre o pâncreas, além de ação anti-inflamatória sistêmica, através da interação com a família de receptores trans-membrânicos, acoplados à proteîna G, mais especificamente o GPR120 e o GPR40.

O adipócito apresenta grande expressão do transportador de glicose GLUT4. Este transporte de glicose é modulado pela ChREBP (Carbohydrtae Response Element Binding Protein), que constitui um fator de transcrição, que regula os processos de glicólise e de lipogênese. A capacidade de conversão da glicose trasnportada para o interior dos adipócitos em ácidos graxos está diretamente relacionada ao aumento da sensibilidade da célula à insulina. Modelos animais com knock-out de ChREBP associam-se à resistência insulínica.

O ácido graxo derivado da lipogênese de novo, com a glicose como substrato, é o ácido palmítico. Entretanto, é sabido que este ácido graxo, isoladamente, acarreta resistência insulínica, pela sua maior conversão em substratos alternativos, como ceramidas e diacil-glicerol, e está intimamente relacionado à geração de radicais superóxidos e disfunção mitocondrial. No entanto, o adipócito saudável promove uma ligação, através de uma ponte de éster, entre o ácido palmítico e outro ácido graxo, o ácido hidroxi-esteárico, criando assim uma molécula maior chamada ácido palmítico-hidroxiesteárico, ou PAHSA. Ainda é uma incógnita qual a enzima envolvida na criação desta ponte, e esta etapa metabólica torna-se ainda mais complexa, quando sabemos que esta ponte pode estar ligada em resíduos diferentes, criando inúmeros isômeros de PAHSA. Hoje suspeita-se que existam mais de 400 isômeros diferentes de PAHSA, ainda não sendo estabelecido o papel de cada um. Esta etapa da reação é fundamental da resposta insulínica, pois a infusão de PAHSA em modelos animais com knock-out de ChREBP restabelece a sensibilidade à insulina.

Os PAHSA atuam através dos receptores já citados GPR120 e GPR40, promovendo aumento da captação de glicose, diminuição na migração e ativação de macrófagos, redução da geração de citoquinas inflamatórias, redução da produção hepática de glicose, aumento da ação de GLP-1 e melhora da resposta beta-pancreática.

Em modelos de camundongos submetidos à dieta rica em gordura, a sensibilidade à insulina permanece inalterada naqueles em que se realiza infusão crônica de PAHSA. Nos estudos pode-se observar que os PAHSA inibem o processo de lipólise, reduzindo o aporte de outros ácidos graxos livres ao fígado e ao músculo esquelético, e bloqueiam a ativação da proteína quinase C, que quando ativada pelos demais ácidos graxos livres provoca fosforilação inativadora da porção intracelular do receptor de insulina. Portanto, a resistência insulínica em território hepático e muscular esquelético estariam diretamente vinculados à capacidade dos adipócitos em secretar PAHSA. Existem suspeitas que esta capacidade seria mais evidente em adipócitos to território subcutâneo em relação ao visceral.

Desta forma, se por um lado a lipotoxicidade é determinada por certos ácidos graxos livres, outra classe de ácidos graxos pode ter ação protetora, e ainda não se conhecem todos os aspectos que modulam este equilíbrio e que poderiam privilegiar a geração dos PAHSAs. Fato é que os PAHSAs vem sendo utilizados no tratamento de pacientes com retocolite ulcerativa, e tem demonstrado efeito anti-inflamatório, com redução dos níveis circulantes de MCP-1, Interleucina 1, Interleucina 6 e Interleucina 17, que, por sua vez, também estão envolvidos na etiopatogênese do diabetes tipo 2.

Com estas duas apresentações, fica claro que o entendimento de todas as nuances envolvidas na gênese do diabetes tipo 2 está longe de ser completamente elucidado e abre um novo e fascinante caminho de investigação para a cura do diabetes tipo 2 num futuro próximo.

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Dr. Luciano Giacaglia | CRM 70676
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  • Coordenador do Departamento de Hiperglicemia Hospitalar da SBD